tradução de José Carlos González; revisão e notas Júlio Henriques; desenho gráfico de João Bicker; capa de Mário Feliciano A cona das recém-casadas . Não entendo as mulheres que se casam vestidas de saia e casaco diante dum juiz de paz ou presidente de Câmara a bocejar, armadas em modestas ou laicas. O que se impõe é o casamento de alto nível, perante o bispo da diocese, numa catedral tenebrosa de humidade e de pecados, ouvindo pacientemente o sermão e respondendo à liturgia do sacramento, para que depois a profanação do tálamo se torne mais complicada e cheia de remorsos. As noivas devem vestir trajos de noiva, é óbvio, para que o cetim lhes imprima nas feições um luto antecipado (porque é que as noivas se parecem tanto com as mortas? pergunto eu). As noivas devem chegar ao tálamo enfiadas em seda branca, com mangas postiças e ramos de açucena, coalhadas de branco, envolvendo a virgindade (ou a falta dela) numa mortalha, para que o noivo, depois da missa e do banquete, as vá despindo a pouco e pouco, por camadas ou substratos, como as cebolas. A cona das recém casadas é o coração que resta à cebola, uma vez extraídas todas as camadas de brancura. Impõe-se que os vestidos das noivas sejam estratificados e prolixos, para que o noivo, no seu trabalho de sapa e exumação, faça estalar o engomado da saia, do saiote e da combinação, as gazes e véus como lâminas de névoa sobre a carne. Impõe-se qua haja profusão de tecidos, para que o noivo no fim encontre a cona da noiva como um coração vegetal entre a folhagem. Impõe-se que o noivo vá despojando a noiva em silêncio, com uma quase exasterante lentidão, para retardar o momento sagrado da primeira foda matrimonial, dessa primeira foda, ainda fumegante de incenso, granulosa de arroz, a que os noivos costumam proceder na suite dum hotel, com a lua, essa pretensiosa, a ficar melosa nas janelas. Eu sou o tal convidado de todos os casamentos que ata ao carro dos noivos uma fieira de panelas velhas, o tal convidado que os segue até ao hotel e lhes atira pedrinhas à janela e os chateia a noite inteira. Eu sou esse convidado, bêbado e insistente, que trepa pela fachada do hotel e se debruça sobre a suite dos noivos, com a desculpa da camaradagem e dos vapores etílicos, para contemplar a cona da recém-casada, esse âmago de cebola, e depois chorar, por sentir comichão nos olhos e nos testículos.
tradução de José Carlos González; revisão e notas Júlio Henriques; desenho gráfico de João Bicker; capa de Mário Feliciano A cona das recém-casadas . Não entendo as mulheres que se casam vestidas de saia e casaco diante dum juiz de paz ou presidente de Câmara a bocejar, armadas em modestas ou laicas. O que se impõe é o casamento de alto nível, perante o bispo da diocese, numa catedral tenebrosa de humidade e de pecados, ouvindo pacientemente o sermão e respondendo à liturgia do sacramento, para que depois a profanação do tálamo se torne mais complicada e cheia de remorsos. As noivas devem vestir trajos de noiva, é óbvio, para que o cetim lhes imprima nas feições um luto antecipado (porque é que as noivas se parecem tanto com as mortas? pergunto eu). As noivas devem chegar ao tálamo enfiadas em seda branca, com mangas postiças e ramos de açucena, coalhadas de branco, envolvendo a virgindade (ou a falta dela) numa mortalha, para que o noivo, depois da missa e do banquete, as vá despindo a pouco e pouco, por camadas ou substratos, como as cebolas. A cona das recém casadas é o coração que resta à cebola, uma vez extraídas todas as camadas de brancura. Impõe-se que os vestidos das noivas sejam estratificados e prolixos, para que o noivo, no seu trabalho de sapa e exumação, faça estalar o engomado da saia, do saiote e da combinação, as gazes e véus como lâminas de névoa sobre a carne. Impõe-se qua haja profusão de tecidos, para que o noivo no fim encontre a cona da noiva como um coração vegetal entre a folhagem. Impõe-se que o noivo vá despojando a noiva em silêncio, com uma quase exasterante lentidão, para retardar o momento sagrado da primeira foda matrimonial, dessa primeira foda, ainda fumegante de incenso, granulosa de arroz, a que os noivos costumam proceder na suite dum hotel, com a lua, essa pretensiosa, a ficar melosa nas janelas. Eu sou o tal convidado de todos os casamentos que ata ao carro dos noivos uma fieira de panelas velhas, o tal convidado que os segue até ao hotel e lhes atira pedrinhas à janela e os chateia a noite inteira. Eu sou esse convidado, bêbado e insistente, que trepa pela fachada do hotel e se debruça sobre a suite dos noivos, com a desculpa da camaradagem e dos vapores etílicos, para contemplar a cona da recém-casada, esse âmago de cebola, e depois chorar, por sentir comichão nos olhos e nos testículos.