Publicação de crónicas da vida portuguesa
«Setúbal é, como naturalmente sabem, uma cidade pequena, na margem do Sado, vivendo magramente de banhistas e fábricas de sardinha. Tem quatro velhas paróquias, de roda de cujas igrejas se enroscam vielas nauseabundas, dois conventos ou três, sem maior importância arqueológica – exceção feita ao de Jesus, de que falarei depois com mais vagar – e como obras modernas, uma extensa avenida marginal sem terraplenos de cais ocultando a imundície da praia coberta de dejetos, alguns desmazelados jardins impasseáveis, e uma estátua a Bocage, vestida de criado d'ópera, defronte dum portal gótico e ao pé dum chafariz seco. Na varruscadela à pressa das ruas, na brunidura módica de certas casitas novas, na ornamentação dos passeios e alamedas suburbanas, uma pelintrice salta, de cidade que se acapitala, sem estipêndios fixos, particulares ou municipais, e a quem a necessidade da clientela banhista impõe, no verão, despesas, cujos frutos a penúria do inverno inutiliza. Nos bairros velhos, como as construções são primitivas, nulo o conforto, a higiene um mero acinte, acontece que a podridão dos lares corre nas ruas, descoberta, em jorros negros, cujo fartum humano se intromete ao do peixe podre, e ao dos monturos acogulados pelos cantos. Esta povoação de meias sujas, velha e mesquinha, espécie de Ribeira Velha complicada de Alfama e Cruzes da Sé, alastra-se à beira-rio num leque branco, circuntornado de pomares e d'arvoredos, para além de cuja fímbria se alteia depois um aro de serras magníficas, com tiaras de rochas e pinhais. Estes pomares, laranjais na maior parte, que a epidemia arrasou em alguns anos de devastações não combatidas, foram por muito tempo em Portugal um oásis raro, tornando o vale de Setúbal numa corbeille-caçoila, reconstruída sobre desenhos do Éden, e a que parecia estar de guarda, Palmela, a prumo na serra, crenelada e estupenda, com o seu formidável ar de ninho de dragões. A laranjeira morta, as vinhas filoxeradas, outras frondes cobriram a argila riquíssima das veigas, árvores novas supriram, nos regadios das quintas, os cadáveres das antigas, e o pinheiral desceu até dos píncaros, a povoar as calvas que os agricultores não replantavam. De sorte que o forasteiro sincero, depois que passeado na cidade, se vai desinfetar do seu mau cheiro aos campos, ao surpreender o contraste da obra de Deus com a dos homens, a primeira oração que faz é pedir aos céus o terremoto, agora que o Marquês de Pombal já cá não volta, com um indulto para o convento de Jesus, para os Castelos de S. Filipe da Serra e S. Tiago d'Outão, para os portais da igreja do Sapal, e algumas miudezas mais de que este exíguo roteiro não dá conselho.»
Publicação de crónicas da vida portuguesa
«Setúbal é, como naturalmente sabem, uma cidade pequena, na margem do Sado, vivendo magramente de banhistas e fábricas de sardinha. Tem quatro velhas paróquias, de roda de cujas igrejas se enroscam vielas nauseabundas, dois conventos ou três, sem maior importância arqueológica – exceção feita ao de Jesus, de que falarei depois com mais vagar – e como obras modernas, uma extensa avenida marginal sem terraplenos de cais ocultando a imundície da praia coberta de dejetos, alguns desmazelados jardins impasseáveis, e uma estátua a Bocage, vestida de criado d'ópera, defronte dum portal gótico e ao pé dum chafariz seco. Na varruscadela à pressa das ruas, na brunidura módica de certas casitas novas, na ornamentação dos passeios e alamedas suburbanas, uma pelintrice salta, de cidade que se acapitala, sem estipêndios fixos, particulares ou municipais, e a quem a necessidade da clientela banhista impõe, no verão, despesas, cujos frutos a penúria do inverno inutiliza. Nos bairros velhos, como as construções são primitivas, nulo o conforto, a higiene um mero acinte, acontece que a podridão dos lares corre nas ruas, descoberta, em jorros negros, cujo fartum humano se intromete ao do peixe podre, e ao dos monturos acogulados pelos cantos. Esta povoação de meias sujas, velha e mesquinha, espécie de Ribeira Velha complicada de Alfama e Cruzes da Sé, alastra-se à beira-rio num leque branco, circuntornado de pomares e d'arvoredos, para além de cuja fímbria se alteia depois um aro de serras magníficas, com tiaras de rochas e pinhais. Estes pomares, laranjais na maior parte, que a epidemia arrasou em alguns anos de devastações não combatidas, foram por muito tempo em Portugal um oásis raro, tornando o vale de Setúbal numa corbeille-caçoila, reconstruída sobre desenhos do Éden, e a que parecia estar de guarda, Palmela, a prumo na serra, crenelada e estupenda, com o seu formidável ar de ninho de dragões. A laranjeira morta, as vinhas filoxeradas, outras frondes cobriram a argila riquíssima das veigas, árvores novas supriram, nos regadios das quintas, os cadáveres das antigas, e o pinheiral desceu até dos píncaros, a povoar as calvas que os agricultores não replantavam. De sorte que o forasteiro sincero, depois que passeado na cidade, se vai desinfetar do seu mau cheiro aos campos, ao surpreender o contraste da obra de Deus com a dos homens, a primeira oração que faz é pedir aos céus o terremoto, agora que o Marquês de Pombal já cá não volta, com um indulto para o convento de Jesus, para os Castelos de S. Filipe da Serra e S. Tiago d'Outão, para os portais da igreja do Sapal, e algumas miudezas mais de que este exíguo roteiro não dá conselho.»