«Despachadas as provas do livro. Ao escritor é a rotina da escrita - mansuetude e descrição - quem o protege, e a galinha, essencialmente, deve pôr ovos. Não há posturas ideais para o acto criativo, ou talvez a dos Lígures, devotados de tal modo à música que, até na guerra, metade do exército tinha por missão o canto. Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo é o meu terceiro livro de ficção, dez anos depois do segundo, As Cinzas de Maria Callas. Não é um obituário, embora pareça. Tratar da infância não é dissemelhante de exumar a alba. E retratar o aturdimento de ser adulto não é, como galgar o lanço de escadas, uma aposta garantida. Embora continue sem decidir se gosto de fruta cristalizada, não será a última vez que pego em retalhos da memória para os transfigurar num bárbaro descaramento, pois algum preço convém pagar 'à mentira' antes de me endividar o ensejo de ser fiel. Agradam-me os romances de passagem e este meu 'breve catálogo sobre as civilizações desaparecidas' (que, em jeito de ilustração, inclui um 'kamasutra para rouxinóis'), não foge à regra: Tormentas... rastreia, em contos vários, um percurso e a sensibilidade de uma geração deserdada de todos os combates e que cresceu entre a miragem da Europa e a 'perda do Império'. Para já, no entanto, à cata de novos climas, experimento o gozo de matar o narrador, ou de o deixar à mercê de cuidados médicos intensivos e de uma sorte muitíssimo macaca. Vamos a factos: esta noite sonhei que era um serviçal do senhor Michel Eyquem de Montaigne, guardador das pimentas de el-rei Dom Manuel de Portugal, e que, na atalaia do castelo, uma perna marota me desviava intermitentemente da vigília e do caminho do bem, etc., etc.»
«Despachadas as provas do livro. Ao escritor é a rotina da escrita - mansuetude e descrição - quem o protege, e a galinha, essencialmente, deve pôr ovos. Não há posturas ideais para o acto criativo, ou talvez a dos Lígures, devotados de tal modo à música que, até na guerra, metade do exército tinha por missão o canto. Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo é o meu terceiro livro de ficção, dez anos depois do segundo, As Cinzas de Maria Callas. Não é um obituário, embora pareça. Tratar da infância não é dissemelhante de exumar a alba. E retratar o aturdimento de ser adulto não é, como galgar o lanço de escadas, uma aposta garantida. Embora continue sem decidir se gosto de fruta cristalizada, não será a última vez que pego em retalhos da memória para os transfigurar num bárbaro descaramento, pois algum preço convém pagar 'à mentira' antes de me endividar o ensejo de ser fiel. Agradam-me os romances de passagem e este meu 'breve catálogo sobre as civilizações desaparecidas' (que, em jeito de ilustração, inclui um 'kamasutra para rouxinóis'), não foge à regra: Tormentas... rastreia, em contos vários, um percurso e a sensibilidade de uma geração deserdada de todos os combates e que cresceu entre a miragem da Europa e a 'perda do Império'. Para já, no entanto, à cata de novos climas, experimento o gozo de matar o narrador, ou de o deixar à mercê de cuidados médicos intensivos e de uma sorte muitíssimo macaca. Vamos a factos: esta noite sonhei que era um serviçal do senhor Michel Eyquem de Montaigne, guardador das pimentas de el-rei Dom Manuel de Portugal, e que, na atalaia do castelo, uma perna marota me desviava intermitentemente da vigília e do caminho do bem, etc., etc.»