Este romance é mais do que uma viagem guiada pelo território nebuloso da memória. É mais do que uma narrativa construída sob o fascínio das letras de Pierre Loti e sob o efeito da descoberta do seu contagiante exotismo. É já o emergir de uma voz pessoalíssima e de uma concepção romanesca que vive muitas vezes paredes meias com o tempo cinematográfico. Uma Barragem contra o Pacífico poderia ser, também ainda hoje (1988), apenas uma visita guiada aos escombros das propagandas coloniais com que se encheram as paredes da Europa no fim do séc. XIX e na primeira metade do séc. XX para os deserdados e os desiludidos dessa mesma Europa, os que simplesmente procuravam (onde?) o seu quinhão da herança de espaço e mundos novos, ou tão só um lugar seu, onde viver e trabalhar, um canto da planície, entre a floresta e o Pacífico, só com o Sol por cima e hectares de terra fértil a perder de vista, onde apenas haveria que produzir, criar uma família (e, naturalmente, enriquecer) sem problemas nem políticas, sem a sensação de desespero e asfixia das metrópoles; para isso, segundo Marguerite Duras, bastava a embriaguês causada pelas leituras de Pierre Loti. Sim, este romance poderia muito bem ser essa visita guiada... Se antes de mais não fosse a evocação daquelas vidas jovens que, no momento de tomarem posse de si e da terra, já lá na colónia, face à monstruosidade insensível do Pacífico e à transparência mesquinha das suas existências de «brancos pobres» sem horizontes, mais não possuem entre mãos e no corpo do que a raiva surda, que só jovens que batam com a cabeça contra um muro tão duro e tão pouco sólido como o Pacífico podem conhecer, uma raiva que é surda porque não há onde nem a quem reclamar contra a fraude. Precisamente porque «a mãe» morre, a lutar até à insanidade, para dar corpo a uma perfeita loucura — uma barragem que detivesse o Pacífico! —, acreditando em si mais do que no sonho, é verdade, e dessa luta inglória retirando todo um orgulho inútil e toda uma liberdade que é só riso da sua própria situação. Será necessário, então, que alguém conte, que não se esqueça, que mantenha uma factura por prejuízos indefiníveis dentro do prazo de validade. É o que Joseph pede a Suzanne, ele que se considera já contaminado, ganho pelas emanações deletérias da vida da colónia, um destroço à deriva nas ruas da capital colonial que, lucidamente, sabe que a sua raiva só contra si próprio se pode exercer e que nenhuma vingança lhe devolveria o respeito por si próprio e a «mãe maluca» mais as suas absurdas contas e as suas barragens sem pés nem cabeça, roídas por todos os sabotadores (incluindo os caranguejos trazidos pela crueldade das marés do Pacífico) das esperanças dos colonos. Só no cinema (melhor: só numa sala de cinema) Joseph encontrará uma saída para a sua raiva, uma solução de vida, colonial e cinematográfica a mais não poder ser. Mas uma adolescência na Indochina é também um cinema sobre a adolescência, erguido por cima dos escombros das vidas dos adolescentes coloniais. Sequência a sequência, neste seu primeiro grande romance, Marguerite Duras dá-nos — como quem recusa a perda dos sonhos de amor e vida dos seus anos juvenis na Indochina e precisasse de os contar, lembrando-se sempre de mais e mais pormenores, mais factos à medida que o passado se perde, para que no fim haja aquilo a que se chama o presente da memória, o presente do passado —, num fundo tropical de noites, plantações, dinheiro, bailes, álcool, com um gira-discos a tocar a Ramona, enquanto um diamante pode ser ainda um último fôlego, os encontros dos desejos com os corpos, ou tão só a poesia do regresso à ordem natural das coisas...
Este romance é mais do que uma viagem guiada pelo território nebuloso da memória. É mais do que uma narrativa construída sob o fascínio das letras de Pierre Loti e sob o efeito da descoberta do seu contagiante exotismo. É já o emergir de uma voz pessoalíssima e de uma concepção romanesca que vive muitas vezes paredes meias com o tempo cinematográfico. Uma Barragem contra o Pacífico poderia ser, também ainda hoje (1988), apenas uma visita guiada aos escombros das propagandas coloniais com que se encheram as paredes da Europa no fim do séc. XIX e na primeira metade do séc. XX para os deserdados e os desiludidos dessa mesma Europa, os que simplesmente procuravam (onde?) o seu quinhão da herança de espaço e mundos novos, ou tão só um lugar seu, onde viver e trabalhar, um canto da planície, entre a floresta e o Pacífico, só com o Sol por cima e hectares de terra fértil a perder de vista, onde apenas haveria que produzir, criar uma família (e, naturalmente, enriquecer) sem problemas nem políticas, sem a sensação de desespero e asfixia das metrópoles; para isso, segundo Marguerite Duras, bastava a embriaguês causada pelas leituras de Pierre Loti. Sim, este romance poderia muito bem ser essa visita guiada... Se antes de mais não fosse a evocação daquelas vidas jovens que, no momento de tomarem posse de si e da terra, já lá na colónia, face à monstruosidade insensível do Pacífico e à transparência mesquinha das suas existências de «brancos pobres» sem horizontes, mais não possuem entre mãos e no corpo do que a raiva surda, que só jovens que batam com a cabeça contra um muro tão duro e tão pouco sólido como o Pacífico podem conhecer, uma raiva que é surda porque não há onde nem a quem reclamar contra a fraude. Precisamente porque «a mãe» morre, a lutar até à insanidade, para dar corpo a uma perfeita loucura — uma barragem que detivesse o Pacífico! —, acreditando em si mais do que no sonho, é verdade, e dessa luta inglória retirando todo um orgulho inútil e toda uma liberdade que é só riso da sua própria situação. Será necessário, então, que alguém conte, que não se esqueça, que mantenha uma factura por prejuízos indefiníveis dentro do prazo de validade. É o que Joseph pede a Suzanne, ele que se considera já contaminado, ganho pelas emanações deletérias da vida da colónia, um destroço à deriva nas ruas da capital colonial que, lucidamente, sabe que a sua raiva só contra si próprio se pode exercer e que nenhuma vingança lhe devolveria o respeito por si próprio e a «mãe maluca» mais as suas absurdas contas e as suas barragens sem pés nem cabeça, roídas por todos os sabotadores (incluindo os caranguejos trazidos pela crueldade das marés do Pacífico) das esperanças dos colonos. Só no cinema (melhor: só numa sala de cinema) Joseph encontrará uma saída para a sua raiva, uma solução de vida, colonial e cinematográfica a mais não poder ser. Mas uma adolescência na Indochina é também um cinema sobre a adolescência, erguido por cima dos escombros das vidas dos adolescentes coloniais. Sequência a sequência, neste seu primeiro grande romance, Marguerite Duras dá-nos — como quem recusa a perda dos sonhos de amor e vida dos seus anos juvenis na Indochina e precisasse de os contar, lembrando-se sempre de mais e mais pormenores, mais factos à medida que o passado se perde, para que no fim haja aquilo a que se chama o presente da memória, o presente do passado —, num fundo tropical de noites, plantações, dinheiro, bailes, álcool, com um gira-discos a tocar a Ramona, enquanto um diamante pode ser ainda um último fôlego, os encontros dos desejos com os corpos, ou tão só a poesia do regresso à ordem natural das coisas...